Quem somos
Somos antirracistas e atuamos para eliminar o racismo patriarcal cisheteronormativo da sociedade brasileira. Somos pessoas de terreiro, de diversos povos e comunidades tradicionais de matriz africana. Estamos organizados em terreiros, organizações de matriz africana, redes, movimentos e ONGs no Brasil que lutam pelos direitos da população negra. Atuamos em rede, de modo articulado, para o enfrentamento ao racismo sistêmico que se expressa por uma de suas faces mais cruéis: o racismo religioso.
Em áreas urbanas ou rurais, nossas comunidades projetam ações de bem-estar social da população negra, para toda a comunidade de terreiro e seu entorno. Estamos nas regiões metropolitanas, periferias, favelas, campo e cidade.
Racismo religioso no Brasil
O racismo contra os povos de terreiro e comunidades tradicionais de religiões de matriz africana é uma prática histórica, fruto de um projeto sistemático e estrutural da sociedade brasileira. Prova disso é o modo como as populações negras e indígenas são as mais afetadas em relação ao acesso à saúde, educação, trabalho e renda. Soma-se a isso o elevado grau de vulnerabilidade dessas populações a diversas formas de violência, como, por exemplo, o cerceamento de seu direito à crença ou liberdade religiosa.
Uma das principais características do racismo estrutural no Brasil está no modo como algumas ações causam danos desproporcionais à população negra. Assim, é necessário que tenhamos condições de interpretar como certas ações, de iniciativas pública ou privada, têm atingido de modo danoso os povos e comunidades tradicionais religiosas de matriz africana.
Portanto, o racismo religioso, enquanto faceta do racismo estrutural, não engloba apenas os danos causados pelo intencional desrespeito à liberdade religiosa das populações negras e indígenas, mas também considera as ações que causam danos às comunidades tradicionais e espaços religiosos negros e indígenas.
Racismo religioso é um conjunto de práticas violentas que expressam a discriminação e o ódio pelos povos de terreiros e comunidades tradicionais de religiões de matriz africana e seus adeptos, assim como pelos territórios sagrados, tradições e culturas afro-brasileiras. São ameaças, perda da propriedade, expulsão e confisco dos terrenos e casas nas cidades, favelas, bairros periféricos, zonas rurais. Agressões físicas, psicológicas, simbólicas, xingamentos, constrangimentos, perseguições, perda do patrimônio e bens patrimoniais, depredação, falsas denúncias de perturbação da ordem, destruição de seus símbolos, exposição da imagem de religiosas/os/es para fins de ofensa a sua moral e ao seu caráter, em razão da sua religião e/ou crença, é crime.
Povos Tradicionais de Matriz Africana
Os povos de terreiro e as comunidades tradicionais de religiões de matriz africana são múltiplos e estão espalhados por todo o território brasileiro. Possuem uma forma de organização social e política própria e que ocupam e utilizam territórios (Terreiros) e recursos naturais a partir da memória, costumes, usos e conservação do território e do ambiente. Partem de cosmopercepções como condição essencial para manutenção de suas práticas, suas línguas, seus valores civilizatórios e visão de mundo afrocentrados, bem como de suas memórias coletivas e demais legados deixados por seus ancestrais.
São povos que preservam em seus terreiros o legado civilizatório negro africano transmitido pelos povos dos troncos etnolinguísticos Bantu, Fon e Yorubá. Esses terreiros são espaços que refletem, nas suas práticas cotidianas, princípios humanitários próprios de cuidados e proteção a todo ser vivo, em especial aos que enfrentam fragilidades no cumprimento do papel do Estado brasileiro. Os terreiros são pólos de saúde integral, segurança alimentar e nutricional, de segurança, de educação para toda a sociedade brasileira, em especial à comunidade circunvizinha, e de promoção da cultura de matriz africana.
Os povos de terreiro e as comunidades tradicionais de religiões de matriz africana também desempenham um papel fundamental para o fortalecimento das populações negra, através da luta pela garantia de direitos, preservação e ressignificação de sua cultura, do acolhimento de vítimas de violência doméstica e estatal, além de contribuir para a melhoria de vida de pessoas em situação de insegurança alimentar. Contudo, nos últimos anos, as religiões em evidência têm sido atacadas de todas as formas, sofrendo ataques às culturas afro-brasileiras e até racismo institucional. Sem contar que o Estado brasileiro não tem promovido políticas para proteger as religiões e os seus adeptos, tampouco incorporado essas religiões ao patrimônio cultural brasileiro.
É direito fundamental de qualquer pessoa e/ou organização religiosa de matriz africana expressar a sua crença, liderar e promover as suas atividades religiosas com liberdade, respeito e proteção, sendo este direito assegurado pela Constituição Federal de 1988. E é dever do Estado promover políticas de proteção que garantam a liberdade de crença e culto; a igualdade de oportunidades; a proteção dos adeptos e das organizações contra a discriminação e a violência; o reconhecimento e a valorização das culturas, tradições e religiosidades afro-brasileiras; bem como reparar os danos causados pelos ataques sofridos.
Contexto
O atual cenário é de fragilidade da nossa democracia. As consequências do neofascismo e fundamentalismo, crescente no Estado brasileiro, são graves e avançam de forma célere num contexto em que ainda estamos enfrentando os efeitos da pandemia da Covid-19 que, para a população negra, produziu consequências irreparáveis.
O Estado brasileiro revelou a toda sociedade, durante a pandemia, uma realidade já conhecida pela população negra e indígena: a face do racismo que desumaniza e ranqueia as vidas calcificadas no holocausto da escravidão, no genocídio dos povos originários e dos povos tradicionais de matriz africana.
O Estado brasileiro, até o momento, tem falhado em desenvolver respostas sistêmicas e planos abrangentes de combate ao racismo. Contudo, os movimentos negros, organizações sociais e lideranças religiosas de matriz africana vêm pontuando a necessidade de políticas públicas com destinação de recursos para a promoção dos direitos humanos e igualdade racial, além da garantia de reparação em casos de violação destes direitos.
Entendemos que o poder público tem como missão garantir a proteção de todos, aqui destacando os povos de terreiro e as comunidades tradicionais de religiões de matriz africana, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia dos direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, e com respeito e valorização da identidade, formas de organização e instituições desses povos.
Apesar de “oficialmente” representar cerca de 2% (IBGE 2010) das religiões praticadas no Brasil, as de matriz africana são alvos dos principais casos de violências motivadas pela fé que professam. Em 2021, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro, foram registradas 1.564 ocorrências de crimes relacionados ao racismo religioso - quase 200 casos a mais que em 2020. Foram mais de quatro ataques diários, mesmo em meio à pandemia. Ainda assim, sabemos que esses números são subnotificados, dado que muitos desistem de realizar denúncias pela impunidade experienciadas em outras ocorrências.
Em apenas um ano, o número de denúncias sobre ataques contra terreiros mais que dobrou. De acordo com a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), em 2020, foram registrados 243 casos. Já em 2021 este número chegou a marca de 571.
Recomendações
Em face do exposto, recomendamos:
- Assegurar a implementação de legislações, normativas e políticas públicas que visem garantir a liberdade religiosa e a proteção contra os fundamentalismos e o racismo religioso vigente no país;
- Constituição Federal (1988): lei maior do país que garante o direito do livre exercício dos cultos religiosos, assim como a proteção dos locais de culto e suas liturgias (art. 5º, incisos VI ao VIII; art. 19, incisos I ao III; art. 210, §1º);
- Decreto n.º 10.932/2022: ratifica a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (2013);
- Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”;
- Lei n.º 7.716/1989: também conhecida como “Lei Caó”, define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor;
- Lei n.º 9.982/2000: dispõe sobre a prestação de assistência religiosa nas entidades hospitalares, públicas e privadas, bem como nos estabelecimentos prisionais civis e militares;
- Lei n.º 9.394/2016: estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e trata do tema da religião (vide art. 33, § 1º e § 2º);
- Lei n.º 13.796/2019: altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/1996), para fixar, em virtude de escusa de consciência, prestações alternativas à aplicação de provas e à frequência a aulas realizadas em dia de guarda religiosa;
- Leis n.º 10.639/2003 e 11.645/2008: alteram a Lei n.º 9.394/1996, que estabelece as diretrizes da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura AfroBrasileira e Indígena”;
- Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 4.439, de 27 de setembro de 2017: assevera a constitucionalidade do ensino religioso confessional, como disciplina facultativa dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. Define o ensino religioso nas escolas públicas. Conteúdo confessional e matrícula facultativa. Respeito ao binômio “laicidade do estado x liberdade religiosa”; igualdade de acesso e tratamento a todas as confissões religiosas; conformidade com o art. 210, §1°, do texto constitucional; constitucionalidade do art. 33, caput e § 1º;
- Lei n.º 11.340/2006: conhecida como “Lei Maria da Penha”, cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do art. 226, § 8º, da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal;
- Decreto n.º 6.040, de 07 de fevereiro de 2007: institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais;
- Lei n.º 12.288/2010: denominada de Estatuto da Igualdade Racial, visa garantir, à população negra, a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Trata, no capítulo III, do direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos.
- Destacamos a urgência de garantir a efetividade de legislações estaduais e municipais:
- Lei n.º 1.609/2008: cria a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância Religiosa (DECRADI), do estado do Rio de Janeiro;
- Portaria n.º 337/2016: institui o Grupo de Trabalho para a Tutela Fundiária e Tributária e o combate à Intolerância Religiosa, em favor das Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, no âmbito da Defensoria Pública do Estado da Bahia;
- Lei estadual n.º 13.182, de 06 de junho de 2014: institui o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa do Estado da Bahia;
- Lei n.º 9.301/2021: institui o ‘Abril Verde’, mês dedicado ao combate à intolerância religiosa no estado do Rio de Janeiro;
- Lei n.º 8.113, de 20 de setembro de 2018: cria o Estatuto Estadual da Liberdade Religiosa, destinado a combater toda e qualquer forma de discriminação religiosa e desigualdades – por motivo de credo religioso –, que possam atingir, coletiva ou individualmente, os membros da sociedade civil do estado do Rio de Janeiro.
- Garantir a execução de políticas de proteção que assegurem a liberdade de crença e culto;
- Garantir igualdade de oportunidades;
- Garantir a proteção dos adeptos e das organizações contra a discriminação e a violência;
- Garantir o reconhecimento e a valorização das culturas, tradições e religiosidades afro-brasileiras;
- Garantir a reparação dos danos causados pelos ataques sofridos;
- Garantir a constituição e formalização, nos estados e municípios, das Frentes Parlamentares em Defesa dos Povos de Terreiro e das Comunidades Tradicionais de Religiões de Matriz Africana;
- Garantir a criação de uma rede de defesa ambiental, dos povos e territórios sagrados em parcerias com outras organizações (universidades, MP, DP, CNJ, conselhos e órgãos correlatos, ONGs, segmentos religiosos contrários ao racismo religioso), visando o enfrentamento do racismo religioso e a implementação de ações voltadas para a defesa dos direitos humanos;
- Garantir implementação, com dotação orçamentária própria, para as políticas públicas de enfrentamento ao racismo religioso e ao atendimento às vítimas do racismo religioso;
- Garantir a regularização fundiária de terras ocupadas por comunidades tradicionais de matriz africana, reconhecendo a legítima posse desses territórios e avanço para futura titulação;
- Garantir o acompanhamento mais rígido dos casos de violações dos direitos humanos sofridos pelos povos de terreiro e comunidades tradicionais de religiões de matriz africana e a conclusão deles;
- Ampliar os núcleos de atendimento às vítimas do racismo religioso (delegacias especializadas e atendimentos especializados em repartições públicas);
- Garantir a eficácia do atendimento especializado e qualificado em diversos serviços de atendimento à população - social, psicológico, clínico, de defensoria e de segurança pública às vítimas do racismo religioso.
Brasil, 30 de setembro de 2022.
Assinam esse manifesto:
CRIOLA, organização da sociedade civil com 30 anos de experiência na defesa e promoção dos direitos das mulheres negras.
Ilê Axé Omiojuarô (A Casa das Águas dos Olhos de Oxóssi), comunidade de terreiro atuante desde 1985, quando foi fundada por Beatriz Moreira Costa (Mãe Beata de Iemanjá).
Ilê Axé Omi Ogun siwajú (A Casa de Poder das Águas tem Ogun à frente), comunidade de terreiro sediada na zona rural da cidade de São Félix – BA.
Adenilde Bonfim - Ilê asé Dewy Lewa
Adriana Martins - Asé Bangbosé
Ana Clara da Silveira Salvador da Cunha
Arlanza Maria Rodrigues Rebello - Defensoria Pública do RJ
Babalorixá Thiago de Xangô (Thiago F. De Souza Carvalho) - Ilê Axé Òbá Labi
Benny Briolly - Mandata Benny Briolly
Cecilia Coimbra
Cinthia Cristina Santos Fontes
Claudete Maria Da Silva Zacarias - CERPO - Centro de Referencia Popular
DEP Andréia de Jesus - Comissão Direitos Humanos da ALMG, PT
Edlene dos Santos Conceiçāo
Elenice Santa Rosa Santos
Eva Bahia - Didê: Nós por Nós
Gilcelia de Assis Santos
Hannah Bekierman
Ignez Teixeira - Ilê Axé D'Ogun-Já
Igor Thiago Silva de Sousa - Cáritas Brasileira Regional Maranhão
Jessica Cristina Miranda Santos
Joana D'Arc Fernandes Ferraz
Joana Darc da Silva - Ile Axe OdeTaomin Ofa de Ouro
Juliana Drumond - Candidata a Deputada Federal pelo PSOL-RJ
Luana Luna Teixeira NEABI - IFRJ Campus São João de Meriti
Luciana Marina da Silva
Malu Stanchi
Maria da Conceição Cotta Baptista - Axé Kwê Cejá Gbé
Maria Dolores de Lima e Silva - Ase Idasile Ode
Maria Eduarda Gomes Mattos - Quilombolas de Campos dos Goytacazes
Maria Elisa Campelo de Magalhães - Ilê Axé Omiojuaro
Maria José Moura Batista
Marlise Vinagre Silva - Ile Àṣẹ Ìyálóde Ọ̀ṣún Kare Ade Omi Aro
Michele Lopes da Silva Alves - NEABI IFPI-COCAL
Miria Marques Coutinho
Monica Silva Ferreira - Ẹgbẹ́ Ìyá Omi àti Ọbalùwáiyè - Àṣẹ Oníṣègùn
Naira Silva Fernandes - Rumpame Dan Kwe Lemim
Neyla Cassiano Soares
Rachel Barros de Oliveira
Rafael Maul de Carvalho Costa - Grupo Tortura Nunca Mais -RJ
Rita de Cássia Moreira
Roberta Francisco Ribeiro da Silva - Mulherismo Sankofa/ Ação Nós Por Nós
Sonia Maria Barbosa dos Santos - Terreiro de Ogum
Thula Rafaela de Oliveira Pires - NIREMA (PUC-Rio)
Vanessa Gomes Sampaio - Quilombolas de campos dos Goytacazes
Wanda Caroline Prado Alves
Wanda Cristina Araújo da Silva - Axé Egi Omim
Yakekere Katiuscia de Yemanjá - Coletivo As Padilhas do Ilê Asè Òbá Labi